terça-feira, 16 de abril de 2013

Nossa realidade atual, em Betim, expressada numa imagem!



Irlandeses assistem a Missa clandestina nas residências durante a perseguição inglesa.



Gemidos da alma penitente - jaculatórias do pe. Manuel Bernardes


PADRE MANUEL BERNARDES (1644-1710)

O Padre Manuel Bernardes, oratoriano, nasceu em Lisboa. São de Mendes dos Remédios as palavras seguintes: “Vieira e Bernardes [...] distanciaram-se na prédica como na vida. Vieira foi um lutador; a sua vida prende-se por mais de um laço à história política de Portugal; Bernardes viveu o melhor e maior tempo da sua vida — 36 anos — entregue à meditação e à redação dos seus livros na pobre cela da Congregação do Oratório. Lendo-os com atenção, escreve Antônio Feliciano de Castilho, sente-se que Vieira, ainda falando do Céu, tinha os olhos nos seus ouvintes; Bernardes, ainda falando das criaturas, estava absorto no Criador. Vieira vivia para fora, para a cidade, para a corte, para o mundo; Bernardes, para a cela, para si, para o seu coração. Vieira estudava galas e louçainhas de estilo. Bernardes era como estas formosas de seu natural, que se não cansam com alindamentos, a quem tudo fica bem, que brilham mais com uma flor apanhada ao acaso do que outras com pedrarias de grande custo.”

A coleção das obras do Padre Manuel Bernardes compreende dezenove volumes, entre os quais se contam os Sermões e Práticas, os Exercícios Espirituais e Meditações da Vida Purgativa, Os Últimos Dias do Homem, os Tratados Vários, em cujo 2º tomo entra o Pão Partido em Pequeninos, alguns opúsculos e as suas melhores obras, Luz e Calor e a Nova Floresta. Durante o largo período em que viveu na Congregação do Oratório, o Padre Bernardes não cessou de trabalhar, até perder a vista e a lucidez dois anos antes de morrer.

As Jaculatórias que transcrevemos a seguir se encontram no fim da Segunda Parte de Luz e Calor.

O P Ú S C U L O  V

ORAÇÕES JACULATÓRIAS, OU SETAS ESPIRITUAIS PARA ATIRAR AO CÉU E FERIR O CORAÇÃO DE DEUS

O modo de exercitar esta Oração dissemos acima na Doutrina VII. Agora damos alguns exemplos, ou fórmulas das Jaculatórias; não para que a alma devota se ate a palavras certas, e as profira mais como lição decorada na memória do que como parto afetuoso da vontade; senão para que, à vista destes exemplos, conheça melhor o modo de as fazer, e adestre o seu arco. Vão repartidas em três como aljavas, conforme as três vias do Espírito, Purgativa, Iluminativa e Unitiva (que Molinos impiamente chamava o maior disparate da Mística); e assim podemos dizer que as primeiras são de ferro, as segundas de prata, e as terceiras de ouro; se bem aquelas ferirão mais altamente o coração de Deus que procederem de maior auxílio de sua graça, e maior intenção da nossa caridade. Se o Leitor achar em alguma aljava seta que parece pertencer mais propriamente a outra, não forme disso reparo, porque estas coisas morais pouco importa se não pesem ouro fio com os escrúpulos da balança Teológica.

1º — GEMIDOS DA ALMA PENITENTE PARA OS PRINCIPIANTES

DÉCADA I

405 — Senhor Deus: eu sou a miséria, a ingratidão, a indignidade; sou um pecador vilíssimo, a quem não devia cobrir o Céu nem sustentar a Terra. Havei de mim misericórdia, e salvai-me por amor de vossa bondade.

Pai: pequei contra o Céu, e em vossa presença; não sou digno de me chamar filho vosso; fazei-me como qualquer de vossos mercenários.

Lavai-me, meu Senhor Jesus Cristo, nas correntes de Vosso precioso Sangue; e limpai minha alma das manchas de todo o pecado.

Desgarrei-me como ovelha perdida. Que fora de mim, ó bom Pastor, se me não buscásseis, e tomásseis sobre vossos ombros?

Eis aqui está à vossa porta o pobre: eis aqui o leproso e cego, e tolhido, e coberto de inumeráveis chagas. Não necessitam de médico os sãos, mas os enfermos; vinde, e curai-me com a vossa palavra, para glória de vosso nome.

Que era eu, Senhor, no meio de meus vícios, e fora de vossa graça, senão um cão morto, coberto das moscas dos demônios, que em minha podridão se cevavam. Vistes minha miséria, e vos apiedastes. Destes-me vida e misericórdia. Oh, bendito seja tal amor!

Inclinai, Senhor, para mim vossos amorosos olhos, e apagai meus pecados. Concedei-me a graça da renovação de meu espírito, com uma vida totalmente conforme à vossa lei.

Deus meu: proponho firmemente, com o auxílio de vossa graça, não admitir jamais ofensa vossa. Oh! não mais pecar, não mais desprezar vossos preceitos; guardá-los, sim, mais que as meninas dos meus olhos.

Senhor: alcance eu de vós esta mercê; que, no ponto em que certamente hei de cair de vossa graça, antes caia morto de repente; porque viver com injúria vossa pior morte é que a mesma morte, e maior desgraça que o inferno.

Jesus amorosíssimo, Jesus minha Redenção e remédio: de tantas lágrimas que andando neste mundo chorastes, dai-me uma para que amoleça este coração, e o derreta pelos olhos. Dai-me uma lágrima vossa, para que a apresente a vosso Eterno Padre em remissão de meus pecados.  

DÉCADA II

406 — Não entreis, Senhor, em juízo com vosso servo; porque nenhum vivente se justificará diante de vós. De mil cargos que me fizerdes, não poderei responder a um só. Todo me entrego nos braços de vossa misericórdia.

Que maldade há no mundo tão execrável, que eu não esteja pronto para a cometer? Senhor, amarrai com as cadeias de vosso santo temor as fúrias de minha liberdade; porque sou capaz de tornar a crucificar-vos.

Isto me pasma, Senhor: como não respeitei vossa presença! Como não temi vossa indignação! Como me não compadeci de vossas dores! Como pisei vosso Sangue! Como não correspondi a tanto amor! Não pode haver maior cegueira.

Pecaste, alma minha: diz-me, agora, que fruto tiraste do teu pecado? Amaste as criaturas mais que ao Criador: que te ficou rendendo esta desordem? Perda da amizade de Deus, e do direito à sua glória, remorso de consciência, costume de tornar a pecar, escravidão ao demônio, reato da culpa, dívida da pena eterna. Oh, quem dera rios de lágrimas a meus olhos, para lamentar tão grave desgraça!

Vinde, vinde, Senhor, ao meu coração; formai um azorrague das cordas de vosso amor e temor, e lançai daqui todos os maus afetos que profanam a vossa casa.

Rogo-vos, meu Jesus, por aquele primeiro leite que bebeste nos peitos virginais de vossa Mãe Santíssima; e por aquelas sagradas primícias de vosso Sangue, que derramastes na Circuncisão, que não permitais que jamais caia de vossa graça nem esteja um ponto fora dela.

Pequei mais que o número das areias do mar. Porém, Senhor, as vossas misericórdias não têm número. Em vós ponho toda a minha esperança: não padecerei confusão eterna.

Eu a pecar; vós, Senhor, a perdoar-me. Eu a fazer-vos injúrias; vós a fazer-me benefícios. O certo é, Senhor, que cada um obra como quem é. Bendita seja vossa paciência, que tanto me esperou.

Muito agravado estais de mim, e vos sobra razão. Oh, quem para aplacar-vos tivera as lágrimas de uma Madalena, as penitências de uma Egipcíaca, os gemidos de um Agostinho, a compunção de um S. Pedro!

Ah, pecador atrevido e infame! Tu foste o que açoutaste a JESUS, tu o que o coroaste de espinhos; o que lhe lançaste salivas no rosto, o que o pregaste na Cruz. Como te não confundes?

DÉCADA III

407 — Lembrai-vos, Senhor, que sou obra de vossas mãos; lembrai-vos que vos custei muito na Cruz. Não entregueis às bestas infernais as almas que vos confessam.

Não me dirás, alma minha, que males te fez teu Deus, para que assim o ofendesses? Acaso foi crime o morrer por ti de amor em uma Cruz? Porventura te agravou em querer salvar-te, e dar-te o Reino de sua Glória? Que razão posso dar, Senhor, do pecado, que é a mesma sem-razão? Misericórdia.

Ora pazes, Senhor; pazes para sempre; fiz mal, assim o confesso diante do Céu e da Terra. Não farei mais; perdoai-me por quem sois.

Vaidade de vaidades, e tudo vaidade. Que me pode render o amor do mundo, e todas as suas coisas, senão deleite falso, que em um momento passa; tormento verdadeiro, que em uma eternidade não passa?

Que fará um desgraçado a quem a morte colheu em pecado mortal e sepultou nas profundezas? Oh, que gemidos! Oh, que ânsias! Oh, que remorsos! Oh, que desesperações! Oh, que incêndios! Tu não puderas já ser este? Quanto devo, Senhor, à vossa paciência! Bendita seja eternamente.

Não dissestes vós, Senhor, que havia grande festa e alegria no Céu quando algum pecador se convertia? Eia, amorosíssimo Jesus, fazei com vossa graça que seja eu o assunto desta alegria e festa.

Eis-me, aqui Senhor, que sou o filho pródigo, e dissipei a substância de vossa graça, e andei na região remota de vossa presença, apascentando os animais imundos de meus apetites; já torno para vossa graça, lançai-me os braços de vossa caridade.

Oh, banhe-me esse precioso Sangue, que com tanto amor derramastes pelos pecadores! Banhe-me todo com um perfeito batismo, e ficarei mais alvo que a neve.

Senhor Deus: aqui nesta vida me castigai, aqui me abrasai, contanto que me perdoeis eternamente. Não queirais, Senhor, entesourar contra mim vossa ira; não me guardeis para a outra vida a satisfação de vossa justiça.

Oh, horas preciosas dadas para servir e amar a Deus, e empregadas em ofendê-lo! Quem nunca houvera nascido para tanto mal! Ou quem de novo tornara a nascer, para o emendar!

DÉCADA IV

408 — Oh, que cego andava eu Senhor, pois estava sem vós, e vós sois Luz! Oh, como ia errado, pois estava fora de vós, e vós sois Caminho! Oh, que nesciamente procedia, pois estava sem vós, e vós sois Sabedoria! Oh, como estava morto, pois estava sem vós, e vós sois vida!

Nada sou, nada valho, nada posso senão ofender-vos, e precipitar-me no inferno. Esta mesma verdade que agora conheço, se afastares vossa luz, me ficará oculta; e sobre tantas misérias minhas se acrescentará outra, de as não conhecer.

Oh, alma minha, em que te ocupas, em que te enredas? O teu Jesus coroado de espinhos, e tu de flores? Ele suando Sangue, e tu buscando refrigérios? Ele farto de opróbrios, tu faminta de honras? Oh, confusão! Mudemos de vida; tomemos a Cruz; sigamos os passos de Cristo.

De quantos bens me destes, Senhor, usei mal, e em ofensa vossa. Se me fizésseis Anjo, creio que já também fora demônio. Oh, quem tivera digno sentimento de tão enormes excessos, verdadeira dor de pecados tão graves!

O ofício que tomei, Senhor, foi o de pecar; e neste me exercitei com toda a diligência, estudando muito de propósito na maldade. Oh, que bem concordava isto com o fim para que vós me criastes, que é amar-vos, e gozar-vos eternamente! Só vós, que sois infinito em bondade, podereis sofrer tanto.

Onde me esconderei, Senhor, até que passe a vossa ira? Fugirei de vós para vós mesmo; de vós, reto Juiz, para vós, Pai clementíssimo. Em vossas chagas me recolho, que este é o sagrado que vale aos que vão fugindo à vossa justiça.

Oh, quanta foi até agora minha negligência e descuido! O tempo que me concedestes para a penitência, desperdicei-o; os auxílios de vossa graça, rejeitei-os; às vozes com que me chamáveis me fiz surdo. E agora, Senhor, que hei de fazer? Pesa-me de haver pecado; havei de mim misericórdia, misericórdia.

Que dormisse eu tão seguro sobre a vossa ofensa, pendurado do fio da vida sobre a boca do inferno! Grande temeridade a minha! Senhor, dai-me entendimento, e viverei amando-vos e servindo-vos.

Oh, se eu já desprezasse o mundo como ele merece! Oh, se metera debaixo dos pés todas as coisas terrenas! Oh, se somente fizera estimação das eternas!

Afastai, Senhor, vosso rosto de meus pecados; e apagai e extingui todas as minhas iniqüidades. Criai em mim um coração novo; e renovai o espírito reto em minhas entranhas.

DÉCADA V

409 — Sei que hei de aparecer em vosso tribunal; sei que hei de dar-vos estreita conta de toda a minha vida. Não me atrevo, Senhor, a suportar vossos olhos irados. Ordenai agora minha vida, de modo que não desmereça então vê-los benignos.

Aqui vos mostro, Senhor, todas as minhas chagas. Vede como são muitas, como são profundas, como são envelhecidas? Ó médico Divino, sarai as minhas chagas com as vossas; que, para os filhos de Adão estarem sãos, quis o Filho de Deus estar chagado.

Não te desalentes, Alma minha, com a enormidade e multidão de teus pecados. Espera sempre em Deus até à noite cerrada da tua morte; que em Deus há infinita misericórdia e redenção copiosa.

Ajudai-me, Deus Salvador meu; livrai-me por amor da glória do vosso nome. Não vos lembreis de minhas maldades; submergi-as no mar de vossa bondade imensa.

Olha, Alma minha, olha para teu Deus posto por ti em uma Cruz, eis ali o que perdoa, e apaga os teus pecados. Vê quanto padeceu por te salvar; vê com que fina caridade te ama. Guarda-te de jamais tornar a ofendê-lo.

A vós, Senhor, que sois dulcíssimo Esposo de minha alma, desprezei-vos; ao demônio, que é adúltero, fiz-lhe a vontade. Tomara morrer de sentimento de tão feia desordem. Tomara chorar de dia e de noite tão execranda maldade.

Que tenho eu com o mundo, que passa como figura? Que tenho eu com a carne, que murcha como flor? Que tenho com as coisas transitórias, que tudo é engano, perigo, trabalho, vaidade? Eia, eia, salvemos a alma nas tabuas da Cruz, fazendo penitência.

Oh, momento do qual pende a eternidade! Só quem te não considera te não teme. Abri-me, Senhor, os olhos da alma, não me suceda adormecer no letargo da morte eterna.

Senhor, aqui venho fugindo de meus inimigos: abri-me as portas de vossa misericórdia. Recolhei o vosso fugitivo, meu Deus; recolhei-me depressa, que meus inimigos me vêm ao alcance.

Dulcíssimo Jesus: o vosso soberano nome quer dizer Salvador; obrai em mim conforme vosso nome e salvai-me.



quinta-feira, 11 de abril de 2013

A Importância do Rosário em Família



Por D. Williamson
Traduzido por Andrea Patrícia



Caros Amigos e Benfeitores,
  
Para o mês de Maria, e para o dia de Santa Mônica, em particular, vou deixar que uma mãe (e avó) escreva esta carta para vocês. É um artigo intitulado "Reflexões sobre o Rosário em Família". Aqueles de vocês que já a leram na edição de outubro-novembro do ano passado na Catholic Mothers Exchange, certamente não se importarão de que seja levada a um público mais amplo:

"O Rosário será uma arma poderosa contra o inferno, destruirá o vício, diminuirá o pecado, e derrubará as heresias." Essa é uma das 15 promessas feitas a São Domingos e ao Beato Alan pela Mãe de Deus, Nossa Senhora do Rosário.

Por quase 20 anos nós temos rezado o rosário em família com filhos e, agora, netos. Essa prática maravilhosa não faz parte da minha herança (eu me converti aos 30). Portanto, era uma prática realizada sem convicções promovidas pela experiência frutífera ou observação, mas apenas por obediência ao pedido de Nossa Senhora de Fátima para que as famílias orassem juntas diariamente o Santo Rosário.

Durante esses 20 anos, a observável imagem de 15 minutos da família em oração tem sido quase sempre muito diferente do tradicional, lindo e calmo retrato da família reunida para o rosário. Você sabe de qual imagem estou falando: o pai de terno e gravata, ajoelhando-se em pé em frente à estátua de Nossa Senhora, a imagem do Sagrado Coração de Jesus na prateleira sobre a lareira, toda a família se juntando a ele com reverência, cada um igualmente bem-vestido e de pé - exceto a avó ou a mãe, que é retratada na cadeira de balanço com o bebê calmamente sentado em seu colo.

O contraste entre o nosso momento para o rosário em família e esta imagem serena usada me faz pensar: "O que eu fiz de errado? Onde eu falhei?" Nosso momento de oração do rosário ao longo dos anos foi mais ou menos assim:

A mãe chama: "hora do Rosário. Hora do rosário." O de oito anos de idade rapidamente corre para a porta ao lado. Ele diz que logo vai estar de volta. A família se reúne e impaciente espera.

O adolescente diz: "Eu sempre rezo o rosário. Hoje eu não posso porque eu tenho que sair."
A mãe, com um exercício monumental de autocontrole, diz, "A saída deve esperar! Nossa Mãe do Céu nos pediu para rezar o nosso rosário em conjunto." O de oito anos de idade retorna e começa o rosário.

Então, em diferentes graus em cada dia, as interrupções seguintes sem exceção ocorrem:
A campainha toca. O visitante é convidado a se juntar a nós ou é rapidamente despachado. O bebê cospe, ou pior, e tem de ser cuidado. O de dois anos de idade tem um acesso de raiva e tem que levar umas palmadas. O telefone toca. É ligação de longa distância. Os de oito e dez anos de idade discutem sobre seu posicionamento na sala e empurram um ao outro para frente e para trás, cada qual reivindicando que o outro usurpou seu lugar, até que eles são separados. O de 15 anos de idade, que está morrendo de vontade de jogar beisebol, seguido de um rápido jogo de basquete, é vencido por uma fraqueza inexplicável que exige que ele se espreguice no sofá ou fique deitado. Isto exige que eu o cutuque e o ameace silenciosamente até que ele supere essa doença misteriosa.

Eu me lembro até mesmo de uma festa de família, quando todos os 60 (ou quase) convidados corajosamente se reuniram (tem que se ter uma certa dose de coragem para chamar o adolescente no jogo para rezar) na quente sala da frente para rezar o rosário: as janelas estavam abertas, os bebês estavam quietos, e assim o diabo enviou o cão no quintal para sentar do lado de fora da janela e uivar de vez em quando pelos 20 minutos seguintes!

Oh, ajude-nos, Mãe querida. Isso é rezar o santo rosário, meditando sobre os mistérios da vida de Nosso Senhor, como a senhora pediu? Parece que isso é o melhor que podemos fazer. Sinto muito.

Essa tem sido a imagem diária do momento do rosário. No entanto, agora eu posso ver a imagem com uma visão cumulativa de longo prazo. Os filhos crescendo, se casando, e tendo sua própria família. Eles mantiveram a Fé verdadeira, tradicional, através deste tempo tumultuado de erros na Igreja. Um deles escolheu a vida religiosa. Os bebês são agora adolescentes e eles ainda estão rezando o rosário. Seus rostos ainda brilham com a beleza da pureza e inocência, mesmo com um jeito um pouco rebelde, às vezes.

Deo gratias! Obrigada, Senhor, pela graça da Fé. ‘Obrigada, Mãe querida, pelo Santo Rosário. Um dia de cada vez, e os frutos não são observáveis. Devemos simplesmente seguir em frente e perseverar através de todas as distrações e interrupções da vida.’ Do ponto de vista desta avó, eu vejo muitas famílias que estão sendo bem sucedidas na prática da verdadeira Fé. Quase sem exceção, eu acho que elas rezam o rosário. E o inverso é verdadeiro. Pode se observar que uma família após a outra, ao longo dos anos e gerações, foram escorregando para mais longe dos ensinamentos tradicionais da Igreja, e abandonaram ou nunca rezaram o rosário em família.

Famílias jovens, não se preocupem com o caos familiar normal no momento da oração. Assim é a vida, e é inevitável. Apenas façam o melhor que puderem e, ao passo que as crianças crescem, continuem a tê-las com vocês na hora do rosário. Não afrouxem. Afinal, o pedido para rezar o rosário em família não vem da gente. Ele vem da nossa Mãe do Céu, e Deus abençoa a nossa intenção. O rosário em família é a necessidade da família. O vicio, o pecado e as heresias desenfreadas no mundo não podem ser combatidos em um nível intelectual somente. Precisamos da ajuda sobrenatural, e temos a promessa de que iremos recebê-la pela recitação diária do rosário. Esta é a defesa que precisamos na batalha contra os nossos adversários, os principados e potestades, e é prometido a nós através da simples recitação do rosário de Nossa Senhora. Apesar das campainhas, dissensões, cães, e distrações, vamos nos unir e permanecer unidos sob a proteção de Nossa Senhora como um exército de famílias rezando o Santo Rosário. Nossa Senhora do Rosário, rogai por nós!”

Final do artigo. Ele, explicitamente, advoga de modo eloquente pelo rosário em casa, mas implicitamente também nos lembra de uma grande verdade: a santidade deve ser trabalhada diariamente, ao ponto, pode-se dizer, que se a santidade não for trabalhada diariamente, não é de verdade.

Em outras palavras, uma vida agradável a Deus é plantada, é regada, e cresce nas ocorrências cotidianas ordinárias dessa vida, e não nas ocorrências extraordinárias. Eu quero pensar que essas orações extras, que a devoção extra, que a sensação pretensiosa extra em meu peito me faz um santo, mas isso não é verdade – como seria simples se fosse! Ao contrário, o Senhor Deus certamente registra o cumprimento do mandamento que eu empregar para proveito Dele por uma hora ou então cada manhã de domingo, mas Ele também está registrando sexta à noite ou segunda de manhã, quando eu acho que Ele não está tão preocupado, e de fato a minha pontuação em seus livros é a média ao longo das 168 horas de minha semana, ou sobre as 8.760 horas do meu ano. Por isso, a santidade de apenas algumas dessas horas é uma santidade de pontuação baixa.
Mas nossas vidas comuns compõem o grande número de horas de nossa vida. Por isso é melhor que a santidade esteja nas horas normais de nossas vidas, ou não vai ser de verdade. Tentações resistidas, dia após dia, paciência praticada, hora a hora, preferir os interesses de Deus, semana após semana, Deus amado, minuto a minuto – é aí onde a santidade está.

É lógico. Como Deus poderia ter nos dado tão pouco tempo na terra para merecer o nosso lugar no Céu (70 anos passam rápido, jovens, acreditem em mim), se o Céu não fosse merecido pelas atividades corriqueiras em que passamos grande parte do tempo? Tenhamos o cuidado de dar a Deus os momentos extraordinários não mais que os momentos comuns, mas em lugar de momentos comuns como um domingo passado em forma extra piedosa para compensar, em vez de corrigir, nosso desprezo a Deus de segunda a sábado. Ou como o impecável cômodo onde guardamos toda a nossa melhor mobília, mas onde quase nunca ficamos - a vida real se passa na cozinha -, a santidade não é a perfeição sob uma camada leve de pó. A santidade é na cozinha, por assim dizer, ou é nada.
Com essa sábia percepção de que a santidade está nas coisas comuns, em geral, o artigo também sabiamente sugere que a vontade de Deus vem através da rotina diária da mãe em particular. Se uma garota recebe uma educação moderna, é muito provável que ela venha a ser instruída a desprezar os trabalhos materiais domésticos - "vegetal na pia da cozinha" -, e ela vai aprender que, em vez de dar a seus filhos o tempo necessário, ela pode dar-lhes "tempo de qualidade". Mas as mães precisam encorajar exatamente aqui onde elas são atacadas: na monotonia, nas tarefas repetitivas, nos deveres materiais diários.
"Matéria" e "material" são palavras derivadas do latim "mater", que significa "mãe". "Material" é apenas uma letra diferente de "maternal". Pegue o que é "material" fora de "maternal" e sobra muito pouco - uma única letra! Por desígnio de Deus, a maternidade humana não se estende por apenas nove meses, mas por nove ou dezenove anos, e consiste em atender diariamente as necessidades das crianças durante esse tempo, com base em suas necessidades materiais. Que nenhuma mãe transforme em escória o material, e que ninguém despreze as mães por serem materiais. Seu amor pode ser o seu maior dom, mas seu cuidado material contínuo é o ganhador e a expressão desse amor, sem o qual pode murchar.

E que ninguém despreze a repetitividade dos deveres de casa. Por que as mães foram tão veneradas? Devido ao seu desprendimento genuíno. Como isso foi provado? Como um verdadeiro amor de Deus, pela sua ordinariedade e firmeza durante muitos anos. Na medida em que ano após ano ela deu seu amor e cuidado, não "tempo de qualidade", mas todo o tempo necessário, ela é amada como ninguém é amado na vida de uma pessoa.

É por isso que o lar que ela produziu é a verdadeira resposta para todos os tipos de males sociais para as quais não há resposta substituta. Considere esta citação do pecador arrependido, A. S., que fez uma mártir de 12 anos de idade, Maria Goretti, quando ela se recusou a pecar com ele:

"O difícil problema da pureza é em grande parte um problema de assistência, proteção, e compreensão. A santidade do amor materno purifica e preenche um vazio no coração jovem, e satisfaz um anseio de nossa natureza que, se não cumprido, se transforma facilmente em luxúria... Pureza em ambientes como o que eu vivia não é fácil para um menino. Eu contraí maus hábitos. Isso começou a me levar para baixo. Se apenas eu tivesse a minha mãe...".

Padres, sociólogos, reformadores, políticos, psicólogos, todos eles tentaram construir substitutos nos tempos modernos para o lar destruído e a família desintegrada, mas nenhuma dessas substituições é totalmente satisfatória. Mãe das mães, rogai por nós. Nossa Senhora do Santo Rosário, reconstrua nossos lares.


Com todos os bons votos e bênçãos,

Atenciosamente em Nosso Senhor,


Bispo Richard Williamson



quarta-feira, 10 de abril de 2013

Sentenças e avisos úteis para a direção da alma no caminho da perfeição cristã



[Tirado do livro "Luz e Calor", do Pe. Manuel Bernardes]

Não é minha intenção que este volume cresça nimiamente, e me acho já muito adiante, quando ainda restam doutrinas em outras matérias não menos importantes que as passadas. Pelo que, mudando de estilo, reduzirei a documentos breves os que podiam ser discursos mais difusos. Espero que assim seja mais grato e útil aos leitores, em razão da brevidade e variedade amigas da natureza humana. Por isso porventura seguiram esta forma de escrever S. Martinho Dumiense Arcebispo de Braga, S. Diadoco Bispo Foticense, João Bispo de Carpácia, S. Nilo Abade, S. Hesíquio, S. Isaac Siro, S. Hiperíquio Presbíteros, S. Simeão Júnior, S. Máximo Mártir Constantinopolitano, Talássio, Evágrio Monges, S. Marcos Eremita e outros Padres. Dos quais, e de outros autores espirituais famigerados são excertos pela maior parte os avisos que aqui damos, omitindo outros, cuja luz por ser muito alta e forte, poderia ofender os olhos menos puros. Vão distribuídos em seis classes:

§  I - Dos que são mais especulativos ou teóricos
§  II – Algumas outras sentenças notáveis por sua brevidade e substância
§  III – Avisos e documentos práticos que respeitam o trato da alma com Deus
§  IV – Os que respeitam o trato da alma consigo
§  V – Os que respeitam o trato da alma com os próximos
§  Os que pertencem ao conflito da alma com o tentador

I – Dos que são mais especulativos ou teóricos.

1.            Amar a Deus é grande ofício: só este basta para nos levar todo o tempo da vida e todas as forças da alma. Por certo não tem pouco que fazer quem tem a Deus que amar. E assim todas as mais ocupações e ofícios hão de ser ministros deste.


2.            Só duas coisas merecem toda a admiração da criatura racional: a Bondade de Deus e a malícia do pecado. E uma com outra se exageram reciprocamente; pois vemos quão facilmente costuma o pecador agravar a Deus e Deus perdoar ao pecador.

3.            Entre Deus e os homens se atravessa um mar imenso, que são nossos pecados. Porém ninguém desconfie de chegar a salvamento, porque o Salvador sobre este mar, fez de outro mar ponte para passar-mos; sobre o mar de nossas culpas, ponte do mar de suas penas; sobre a corrente de nossas maldades, caminho pleas correntes de seu sangue. Oh Piloto sábio, que no vosso naufrágio constituístes a nossa salvação; e na tempestade de poucas horas, a bonança de toda a eternidade!

4.            Deixem embora os moços a consideração e temor da morte para os velhos, se se atrevem a conceder-me, que o vidro que hoje sai das mãos do Artífice não é tão frágil, como o que saiu há muitos anos. A hora, que a cada um toca, essa o quebra; e todas podem tocar a todos. Desde que o primeiro homem quebrou o preceito de Deus, tão sujeita a se quebrar é a vida de um Abel, como a de um Matusalém.

5.            Diz-me, pecador de costume: Acaso passarás mais seguramente o rio, quando o engrossaram as cheias? Curarás mais facilmente a febre, quando se apossar das entranhas e se fizer ética? Vencerás melhor teus inimigos, quando forem mais no número e nas forças? Lançarás fora do monte a serpente, quando houver vivido nele por muito tempo e souber as entradas e saídas? Arrancarás ligeiramente a árvore, quando tenha alçado altas raízes? Pois sabe, que maior engano é cuidares que não querendo tu agora converter-te a Deus, e arrepender-te de teus pecados, quererás depois e poderás facilmente.

6.            Acaon furtou uma régua de ouro e em pena perdeu a vida. Queremos sem delito e sem castigo furtar outra mais preciosa? Tomemo-la a S. Paulo: Domine quid me vis facere: Senhor, que quereis que faça? Quem regrar por esta régua de ouro todas as suas ações, palavras e pensamentos, não perderá a paz do coração, nem o tempo da vida, nem a vida da eternidade.

7.            Quatro mães muito formosas parem quatro filhos muito feios. A verdade pare ódio, a prosperidade orgulho, a familiaridade desprezo, e a segurança perigo.

8.            Ao Pródigo e ao Avarento falta o mesmo que lhes não falta: porque todos os tesouros da terra e do mar são poucos para tornar, um a lançá-los no mar outro a escondê-los na terra.

9.            Que vão ao inferno Caim pela sua inveja, Abiraon pela soberba, Zambri pela luxúria, Nabal pela avareza, o Rico do Evangelho pela gula e regalo, as Virgens loucas pela negligência, não é para admirar; isto é para admirar, que pelo jejum e Oração, pela esmola, continência e silêncio, pela pobreza e penitência haja também caminho trilhado para o inferno. Por este vai a hipocrisia; mas enfim para no mesmo fim, porque secretamente se comunica e abraça com todos os mais vícios.

10.         As obras a que falta a pureza de intenção reta parecem-se com moeda falsa, ou que tem liga. Pelo cunho correm e muitos se enganam; pelo metal não têm valor intrínseco. Daqui vem que não servem para comerciar com Deus, e comprar-lhe o Céus; porque este Senhor não pode ser enganado.

11.         O que é dotado de verdadeira virtude tem os seus males por fora e os seus bens por dentro. Pelo contrário, o amigo dá glória vã, o hipócrita, o mundano, os seus males estão por dentro, porque são verdadeiros; e os seus bens por fora, porque são imaginados e aparentes.

12.         Como a rosa entre espinhos, assim a castidade se defende entre recatos. O recolhimento e modéstia são a casca da continência; e a fruta sem casca facilmente se corrompe. Verdade disse, quem disse: Prope se se consequuntur proponi formam, et exponi pudicitiam.

13.         Entre todas as virtudes somente a humildade se ignora a si mesma; como traz os olhos baixos e fitos no abismo no seu nada, não reflete sobre o seu conhecimento, porque o verdadeiro humilde não presume que o seja.

14.         Da boca de um leão tirou Sansão um favo de mel; e de um favo de mel tirou Jonatas o perigo de sua morte. Deste modo os bons sabem tirar dos trabalhos o doce fruto do seu prêmio, e das mesmas culpas bem choradas a suavidade da clemência Divina. Pelo contrário, os ímpios da suavidade da clemência Divina fabricam o perigo de sua morte eterna.

15.         A melhor coisa deste mundo e do outro é ser santo. A razão é clara: porque a melhor coisa absolutamente é Deus; e os que mais participam de Deus, são os que neste mundo vivem em sua graça, e no outro em sua glória; e estes são os Santos.

16.         Dá a tua vontade ao próximo: e dar-te-á o seu entendimento. Quando se inteirar de que o amas, então lhe persuadirás o que quiseres. O anzol da razão há-de ir coberto com a isca da caridade. Caridade é língua universal que entendem até os bárbaros e os mesmos brutos: fala nesta língua e logo serás bem ouvido.

17.         Aceitar com estimação os benefícios, ainda quando os escusas, e eles são tênues, e o benfeitor os reputa por grandes, é sinal de condição benigna e humilde.

18.         As raízes da concórdia com o próximo são as semelhanças dos ditames do entendimento e inclinações da vontade. Nas três Divinas Pessoas onde há suma união, há um só entendimento, uma só vontade, uma só natureza.

19.         Com a tenaz de ouro pegou o Anjo da brasa do altar; e levando a brasa, levava juntamente o fogo. Não vás a Deus senão por Cristo; nem a Cristo senão por Maria. Quando não vás, mas és levado, vai por onde Deus te leva.

20.         O ramo que tem muita fruta inclina para a terra; o que nenhuma, levanta-se para o ar; e dizem que se lhe penduram uma pedra, então leva fruto. Os servos de Deus, quanto mais e melhor obram em seu serviço, mais se humilham; e os que nada fazem, mais se ensoberbecem. Mas, para levarem algum fruto, os carrega Deus com a tribulação e desprezo.

21.         No mundo espiritual e interno o Sol é a Cruz; desta nasce toda a luz da inteligência e todo o fervor do afeto: e se daqui não nasce, temo que sejam luz e fervor falsos.

22.         Os exercícios e penitências que a alma toma, alguma coisa a purgam: a perseguição dos demônios, mais; a dos próximos, ainda mais; mas sobretudo Deus com as subtrações de sua graça.

23.         Não tens inimigo mais poderoso, mais astuto, mais emperrado, e mais doméstico, do que é teu amor-próprio. Se queres errar frequentemente, sentenceia pelo seu voto.

24.         Quem pelo discurso humano presume esquadrinhar os juízos divinos, sonda o mar com uma bóia; e quem ao juízo divino pretende encobrir os discursos humanos, tapa o Sol com um vidro. Porque para a profundeza de seus conselhos, toda a nossa consideração é leve; e para os raios de sua vista, todo o nosso coração é transparente. Vidro chamei ao coração humano; ainda mal que se lhe parece em muitas propriedades; porque não só é para os olhos divinos patente, mas também para a impressão de seus avisos duro, e para os golpes de seu castigo frágil: In flagellis tuis infirmitas nostra teritur, et iniquitas non mutatur: mens aegra torquetur, et cervix non flectitur.

25.         A mais importante, a mais difícil e a mais gloriosa empresa que o coração humano pode acometer, é vencer a si próprio. Dura o combate quanto a vida dura; porém morrer no conflito é o mesmo que vencer, e as armas na mão são o mesmo troféu.

26.         Desconfia de ti, e confia em Deus; que é o mesmo que não fundar em areia movediça, mas em penha viva; nem defender-te com escudo de cera, mas de aço. Ou presumas da tua fortaleza, ou desconfies da bondade de Deus, sempre o desobrigas de socorrer-te.

27.         Muito proporcionado modo de alcançar graças é render graças. Para ali correm as coisas estimáveis, para onde são estimadas. O agradecimento é aqueduto da liberalidade. Um ingrato pedindo, apara uma mão à fonte e com a outra a entope.

28.         O soberbo é filho do diabo, assim como o humilde o é de Jesus Cristo. O soberbo parece em certo modo que afeta negar-se de criatura e constituir-se Deus sobre o altar de seu coração, incessando-se com os fumos da sua vaidade e sacrificando-se às inferioridades que considera nos mais: Non sum sicut caeteri homines. O soberbo esteriliza, quanto em si é, a Divina Misericórdia e renuncia o Espírito Santo.

29.         Na maior pobreza está encantado o maior tesouro. Dos espinhos dos trabalhos rebetam rosas das consolações. O jugo de Cristo sobre nossos ombros, converte-se em asas. Pela aniquilação se entra a ser tudo. Abaixando-te tocarás no Céu. Sofrendo se vive à vontade. Quanto mais atribulado, mais mimoso. Quanto te aborreceres, maior bem te queres. Oh doutrina altíssima, ensinada enfim pela Sabedoria do Eterno Padre! Oh paradoxos de verdade Católica e de fruto de vida eterna!

30.         Não há modo de mandar ou ensinar mais forte e suave do que o exemplo: pesuade sem retórica, impele sem violência, reduz sem porfia, convence sem debate, todas as dúvidas desata, e corta caladamente todas as desculpas. Pelo contrário, fazer uma coisa e mandar ou aconselhar outra, é querer endireitar a sombra da vara torcida.

31.         Não há coisa mais doce que o Amor de Deus, nem mais robusta, nem mais sublime, dilatada, aprazível e preciosa no Céu e na terra. Todas as dificuldades alhana: para todo o peso lhe parece que tem ombros; envergonha-se da palavra: Não posso; não se queixa, nem murmura, nem regateia obséquios com o amado; vive, e se conforta de padecer e trabalhar. Como nasceu de Deus, é generosíssimo, e não afeta o mínimo interesse próprio. Quem reparar como é ativo, e leve, e amigo de liberdade, e simples, e sutíl, e penetrativo, e purificador, logo dirá que é da natureza de fogo. Procura, alma minha, arder neste fogo, e serás bem-aventurada.

32.         No Evangelho está escrito que os de Nazaré levaram a Jesus ao pico de um alto monte, para dali o precipitarem. Montes são as dignidades: Jesus é a graça e estudo da perfeição espiritual; se subires a alguma dignidade, olha não precipites dali a Jesus.

33.         Verdadeiramente são inexplicáveis os proveitos que vêm a uma alma das injúrias e tribulações bem levadas. Se o demônio não destruíra a fazenda de Jó, não lha dobrara Deus; se Saulo não perseguira a Igreja, a Igreja não fora defendida, honrada e propagada por Paulo; José foi adorado de seus irmãos, porque de seus irmãos foi vendido. Só o proveito de nos meterem as tribulações mais com Deus, não tem preço; porque enfim somos (diz Crisóstomo) como meninos; que quando nos fazem cocos, então fugimos para a mãe: Ad Deus currimus, sicut pueri, cum larvas aspiciunt, ad matrem.

34.         Os Santos não se diferençam dos pecadores e imperfeitos em não ser tentados e perseguidos; senão, em que o pecados e imperfeito com qualquer leve impugnação cai; e o Santo contra a mais forte se sustenta.

35.         Se o homem não tem dentro de si mesmo pela assistência e manutenção divina tudo o que é necessário para se defender dos inimigos da alma, nenhum lugar, nem companhia, nem estado, nem outra qualquer ajuda extrínseca o pode assegurar.

36.         Desculpar-me do pecado é agravá-lo; porque se estou inocente, o silêncio é a melhor prova disso; e se o não estou, a escusa envolve soberba e mentira. A boca dos ímpios (diz Salomão) tapa a maldade: Os impiorum operit iniquitatem. E pouco antes tinha dito: Que a maldade tapa a boca dos ímpios: Os impiorum operit iniquitas. Como lhes tapa a maldade a boca, se com a boca tapam eles a maldade? É que, tapando a maldade, a descobrem mais; e então com a desculpa ficam tão convencidos, que não tem mais que dizer.

37.         A memória de Deus é saúde e limpeza da alma. Parece que a alma não tem o rosto e mãos lavadas enquanto se não purifica, refresca e aligeira na memória daquele Senhor, que é fonte de toda a consolação e pureza.

38.         O azeite afugente as sevandijas asquerosas que se criam no leito; e o nome de Jesus os pensamentos torpes que se criam no ócio: Oleum effusum nomen tuum.

39.         Água de lágrimas e fogo de amor conduzem a alma ao refrigério da união com Deus:Transivimus per ignem, et aquam, et eduxisti nos in refrigerium.

40.         Tribulações tomadas como da mão de Deus, com submissão e paciência, são a divisa dos Predestinados. A quem Deus não açouta é sinal que não perfilha (disse S. Agostinho): Si exceptus es a passione flagellorum, exceptus es a numero filiorum. O lavrador mete no jugo os bois que reserva para si, e manda pastar os que há de vender para o talho. De Salomão sabemos que pecou, e sabemos que logrou contínuas prosperidades; por isso não sabemos se se salvou.

41.         Há uma conversação, que é pasto da alma; e há outra, de que a alma é pasto. Quando falamos com Deus, ou de Deus, a alma come, porque a devoção se lhe aumenta; porém quando falamos com o mundo, ou do mundo, a alma é comida e carcomida; porque a devoção se lhe gasta e consome.

42.         O encalmado de amor de Jesus Cristo, diz das injúrias e calúnias, como se foram fruta colhida pela fresca: Estão ricas! Não há mais?

43.         Se espancas os cães da vinha, pareces ser também ladrão. Não és tu dos reformados, pois murmuras e intimidas os zelosos. Mas lá está o Senhor da vinha, a quem darás conta dos frutos, que nem defendeste, nem deixaste defender.

44.         A nossa alma é como a espada; que, se não passa por fogo e água, isto é, por trabalhos voluntários e involuntários, e por tentações de prosperidade e adversidade, nunca toma têmpera, com que sem quebrar, dobre e logo torne a ficar direita.

45.         Sem dinheiro não há mercador, ainda que tenha grande agência, e muita indústria. E sem humildade não há homem espiritual; por solícito e prudente que seja, não embolsará virtudes.

46.         Que maior altura que a de Deus? E para topar com ele, o remédio é baixar bem a cabeça. Porque tantos a erguem, tão poucos lhe chegam.

47.         A mão bem despegada dos bens terrenos, não é a que dá esmolas do supérfluo; senão a que não desvia faltas do necessário.

48.         A porta do Céu, diz o Evangelho que é estreita; o mesmo se pode dizer da anteporta, que é a Oração. Mal podem entrar por ela espíritos, ou muito inchados de confiança própria, ou muito enfeixados de cuidados de fazenda, ou muito acompanhados de amor de parentes.

49.         Quando à custa de trabalhos e suores tiveres já domado e obediente teu vil e desprezível corpo, e te vires livre de suas dependências e cativeiros, e que já se espiritualizou de modo que não remurmura da fome, sede e trabalhos, então verás, mais claramente que em um espelho, aparecer no centro da tua alma aquele Senhor, que é sobre toda a capacidade do nosso conceito. Vê-lo-ás, não obstante ser invisível: e a alma profundamente chagada de seu doce amor, misturará com o gozo, muitas lágrimas mansas e suspiros inenarráveis. Neste estado lembra-te de mim: ora por este pecador vilíssimo, porque sabe que tens chegado à união com Deus, com a qual te deu juntamente uma tal confiança, que nunca sairás envergonhado de sua presença.

50.         Repare-se na indústria com que o Autor da Natureza criou na espiga cada grão armado com sua aresta por amor das aves roubadoras. Assim também na Oração nenhum fruto nos concede, que juntamente não nos dê virtude para o defendermos das tentações.

51.         Enquanto não sou capaz de vitupério, também o não sou de louvor. Porque impossível é, que o louvor me não esvaeça, se o vitupério me exaspera. E a grimpa que se move para uma parte com este vento, por que se não moverá para a contrária com o contrário?

52.         Está escrito: Lança de casa a escrava Agar e seu filho Ismael; porque não será herdeiro o filho da escrava com meu filho Isaac. A escrava é nossa vontade; seu filho é o amor-próprio; Isaac é o amor divino; a herança o Reino de Deus, que está dentro em nós.

53.         Sumamente odiosa aos demônios é a Oração pura; e o que a faz pura é a concórdia do sentido com o espírito e do espírito com Deus; porque o inimigo não cobra terror, tanto do exercício numeroso, quanto do bem formado.

54.         Quando todos os próximos te parecem bons, nem descobres neles coisa que se te represente imunda e contaminada, então és limpo de coração e por conseguinte poderás ver a Deus. Procede isto de reinar na alma um especial sentimento e participação da simplicidade Divina, que não é discursivo, senão que como coluna de nuvem e luz, por uma parte encobre todas as virtudes próprias e defeitos alheios; por outra, mostra todas as virtudes alheias e defeitos próprios.

55.         Um Santo Padre define a ciência deste modo: Scientia est se ipsum nescire extra se positum in Deo: É não saber um de si mesmo, por estar fora de si posto em Deus. Isto se faz na Oração e contemplação. Por onde só os que a exercitam e logram, são os verdadeiros sábios.

56.         A Sabedoria Divina com uma alma é uma mãe com o seu menino. Para que o menino pegue no seio, não há diligência que a mãe não faça: canta, embala, afaga, acaricia e trata-o com todo o mimo e brandura. Porém tanto que é necessário dar-lhe comida sólida, porque já tem dentinhos; afasta-o de si e diz-lhe rigorosamente: não, não, isto amarga. O mesmo usa Deus com os principiantes, consolando-os e mostrando-se amoroso. Depois que tem pegado na Oração e adquirido alguma firmeza na vontade, seca-se, e leva-os por tribulações, que é o pão sólido, com que se fazem homens.

57.         Onde no mundo grande se ajuntam e continuam as trevas com a luz (que é na superfície da terra) aí quis Deus que o mundo pequeno peregrinasse, até que as suas trevas se alumiem, ou pelo contrário, a sua luz se escureça eternamente. Peça logo a Deus, como David pedia:Quoniam tu illuminas lucernam meam Domine, Deus meus illumina tenebras meas.

58.         Deus, como Criador, é nosso princípio; como Glorificador é nosso fim; e como Redentor é nosso meio, para conseguirmos esse fim. Porque nada, que saiu de Deus, pode tornar para Deus, senão pelo mesmo Deus.

59.         Verdadeiro bom Pastor é aquele, que por tratar melhor do seu aprisco, se fez Cordeiro, se fez pasto, e se fez aprisco: Cordeiro tomando o nosso corpo na Encarnação; pasto, dando-o no Sacramento; aprisco, rasgando-o na Cruz para nos recolher e amparar nas suas Chagas.

60.         O coração multiplicado pela diversidade de desejos, nem sabe buscar, nem pode achar aquilo que é um de tudo; isto é, o bem que por ser sumo, é também simples; e por ser simples quer nosso coração totalmente um. E esta é a limpeza, a quem o Senhor prometeu sua vista, porque este é o um necessário que se não descobre, sem escusarmos a multidão supérflua:Turbaris erga plurima: porro unum est necessarium.

61.         De que te jactas, homem vanglorioso? Do mau, ou do alheio? Tudo o que tens de bem, é mercê alheia; tudo o que tens próprio, é miséria pura. Escolhe agora, qual destes títulos se faz louvável. Qualquer dos dois, que assines, sempre te mostras néscio; porque ou desconheces o Autor do Bem, o a natureza do mal: Unde igitur (diz S. Agostinho) gloriabitur omnis caro? Nunquid de malo? Haec non est gloria, sed miseria. Sed nunquid gloriabitur de bono, nunquid de alieno? Tuum, Domine, est bonum, tua est gloria.

62.         As tábuas da Lei, que eram de pedra, mandou Deus guardar na Arca, que era de ouro; para que entendessem os homens quanto maior estimação deviam à observância da Lei, do que às riquezas da terra; e que mais desvelo haviam de ter em guardar os Mandamentos, do que em guardar os tesouros.

63.         O mundo é mar, a ambição é sede. Não me espanto que o ambicioso se não sacie com os bens do mundo; porque a água salgada não apaga, antes acende as securas. Impossível é apagar bebendo, a sede que nasce de beber; e satisfazer possuindo, a cobiça que nasce de possuir.

64.         As tribulações dos Santos são enigma: uma coisa parecem, e outra são e significam; parecem misérias da fortuna e são conselhos da Providência Divina e sinais da felicidade eterna.

65.         O pão sustenta o corpo; a Oração a alma. Se o corpo anda falto de sustento, com qualquer tropeço ou encontro, cai; e se a alma anda falta de Oração, com qualquer tentação peca:Aruit cor meum, quia oblitus sum comedere panem meum.

66.         Quando o pecador considera a grande miséria de seu estado, então começa ela a não ser já tão grande: porque o princípio de contentar a Deus é descontentar-se de si; e sem tornar em si, ninguém torna para Deus. Assim nos ensina a parábola Evangélica daquele moço mal aconselhado e bem arrependido: In se reversus dixit, ibo ad Patrem.

67.         Se importou que Cristo padecesse, para entrar na glória própria, como não importará que tu padeças, para entrar na sua? No Céu todos são Reis, mas os seus ceptros não se fazem senão de Cruzes. Decretou Deus fazer Bem-aventurados de miseráveis; tu não hás de ensinar-lhe a fazer a glória. Se te não serve para ti do modo que a dispôs Deus até para com seu Filho, faz outra a teu modo, que então serás miserável eternamente.

68.         O estado melhor em si, nem sempre é o melhor para ti. No mesmo terreno pega bem uma planta, e floresce, e frutifica; e outra murcha ou pasma e seus frutos são desmedrados.

69.         Sub umbra dormit in secreto calami, et in locis humentibus. Protegunt umbrae umbram ejus, et circumdabunt eum salices torrentis. Neste texto de Job lhe fala ao pé da letra o demônio. O homem é mundo pequeno; as moléstias com que por divina permissão o demônio persegue ao homem são várias. O mais, Qui legit intelligat.

70.         Vícios da nossa natureza não saram senão com a graça; porque a graça é participação da natureza de Deus; e só a natureza daquele que é bom por si pode retificar a natureza daquele que não é bom senão por Ele. Mas esta graça quer-se muito pedida e solicitada e esperada; e depois muito agradecida, guardada e empregada. Porque tão raros isto fazem, por isso tantos morrem com os mesmos vícios com que viveram.

71.         A caridade do próximo é a mesma caridade de Deus quando abunda; assim como a água que trasborda é a mesma que enche o vaso. Daqui se mostra, que se cuidas que amas muito com verdadeira caridade o próximo, sem amares ainda muito a Deus, te enganas; porque esse não é mais que um amor, ou natural, ou político. Vê-lo-ás pela facilidade com que se desata com qualquer impugnação contrária; o que não sucede, quando era caridade sobrenatural e de legítimo nascimento de Deus.

72.         A mão grosseira e calosa não percebe distintamente pelo tato as coisas materiais; muito menos se tiver calçada a luva. Ao nosso espírito sim foi dado sentimento e percepção das coisas espirituais e divinas; porém, como o temos envolvido e calçado entre tantos sentimentos grosseiros das coisas terrenas, daqui vem não poder formar notícia que o afeiçoe e faça sábio das coisas divinas.

73.         Muitos ainda dos que aspiram à perfeição se enganam na eleição do bem, ou declinação do mal, movidos de razões claras que lhes propõem o seu entendimento, não advertindo que há outras razões de superior ordem, das quais haviam de fazer regra. Não basta só seguir a razão em aparecendo; é necessário compará-la primeiro com outra razão e então seguir a que for maior. E sempre as razões Divinas e eternas e Evangélicas são maiores que toda a razão humana, temporal e política.

74.         Quanto mais te sujeitares, mais sábio serás. O caminho da humildade e o da luz não são dois, mas um só. Tu não crês que Deus é Luz e Sabedoria? E que se afasta dos que estribam sobre si mesmos? Logo como pode ser, que afastando-se Deus de ti, fiques ainda com luz e sabedoria? O corpo inteiriçado perde a sensibilidade; e se o espírito também se inteiriçar, também perderá o tato espiritual das verdadeiras verdades.

75.         A vida da alma é o amor de Deus; a vida do amor de Deus, é a Oração pura; a vida da Oração pura é a mortificação contínua; a vida da mortificação contínua é a resolução generosa. Resolvamo-nos: de outro modo nunca viveremos ao amor de Deus.

76.         Onde não há silêncio, não há muita Oração; onde não há muita Oração, não há muita virtude. Agora, se entendes que te é necessária a virtude, entenderás se o silêncio te é necessário.

77.         Enquanto não amares os desprezos, as mofas, detrações e contradições do próximo, não hás de fazer coisa grande; e tanto que o demônio vir que a intentas, aí tem com que derrubar-te quantas pedras fores pondo no edifício. Assim como o abanador enxota as moscas, assim afugenta os soberbos o temor de serem desprezados.

78.         Não emendarás a língua, enquanto não emendares o coração. E porque uma vez emendado o coração somos perfeitos; por isso disse o Apóstolo S. Tiago: Que quem não tropeçasse na palavra, era varão perfeito.

79.         O demônio é cozinheiro (Nabuzardan princeps coquorum): se vê que não gostamos do pecado guisado dum modo, tantos temperinhos lhe busca, até que nos abre a vontade; e se não levamos todo, contenta-se com que provemos algum bocado.

80.         Samuel disse a Saul, quando este lhe desobedeceu: Que a dureza de juízo era como a idolatria: Quasi peccatum arilandi est, repugnare: et quasi scelus idolatriae, nolle acquiescere. O homem aferrado ao seu parecer, em concebendo alguma coisa que intenta, ou ajuíza, faz ídolo daquele conceito, e o coloca no altar do seu coração, e com ele consulta o que há de fazer; e as respostas que ouve em si mesmo, essas segue, e tem como vindas do Céu, sendo que vem do demônio, que fala por aquele ídolo.

81.         Mortificação é crucifixão: e assim como ninguém pode crucificar a si mesmo de todo, se outro de fora o não crucifica, assim ninguém se mortifica perfeitamente, se outro não ajuda a isso. Pregará quando muito os pés com as mãos, e uma mão com a outra; e isso com esperas muito detençosas, e grande mágoa de si mesmo, mas a outra mão sempre lhe ficará solta.

82.         Quem tem frio, chega para si a roupa; e quem tem calma, a afasta. Assim, quem tem amor de Deus, logo lhe enfadam as coisas deste mundo e deseja alongar-se delas. E pelo contrário, quem está frio neste amor, como não tem consolação por dentro, a busca por fora nas criaturas: e isto é chegar para si a roupa: Quid enim (disse S. Gregório) sunt terrena omnia, nisi quaedam corporis indumenta?

83.         O Santo Frei Egídio, discípulo do Seráfico Padre S. Francisco, dava esta doutrina, que é a substância de toda a vida espiritual. Se queres bem sentir, tira de ti todos os sentidos. Se queres bem amar, tem ódio a ti mesmo. Se queres bem ganhar, sabe perder. Se queres viver deliciosamente, aflige-te; se estar seguro, está sempre em temor; se ser honrado, despreza-te; e honra aos que te desprezam; se ser abençoado, deseja haver maldições. Oh quão grande sapiência é saber fazer isto! E porque são grandes coisas, não são concedidas a todos.

84.         O demônio parece-se com a serpente Amphisbaena, que na cauda tem outra cabeça. Porque consistindo as virtudes no meio, ele morde por ambos os extremos; já nos quer arrojados, já pusilânimes; ora presumidos, ora desesperados; agora nos puxa para o silêncio indiscreto e logo para a loquacidade vã; se nos examinamos devagar, carrega para o escrúpulo; se só de passo, para a relaxação e liberdade da carne.

85.         Se aceitares os conselhos de Cristo, não sentirás pesada a lei de Deus. Ponhamos exemplo: manda Deus que não cobiçemos coisa alheia; e aconselha Cristo que não possuamos coisa própria. Manda Deus que não demos mal por mal; e aconselha Cristo que oremos pelos que nos perseguem e caluniam. Observa tu, como bom Religioso, estes conselhos; não quebrarás, como mau secular, estes mandamentos. Toma sobre ti maior carga, sentirás menor peso. Mais custara aos bois levar a carga, se não levassem justamente o carro e as rodas; nem a ave pudera levantar o corpo, se não levantasse juntamente as asas.

86.         O demônio, para casar com a alma, fala-lhe de noite. Porque se a alma vira como é feio, nunca em tal consentira: Ita se habet peccatum (diz S. João Crisóstomo); ut priusquam fiat et ad opus perveniat, obtenebret, et decipiat mentem.

87.         Faz com Deus o que podes, Deus fará contigo o que não podes. A sua graça dá de si, quanto racionalmente puxamos por ela; e aos esforçados aumenta o esforço: Posui adjutorium in potente.

88.         A formosura de qualquer criatura que vemos é mensageira ou precursora da formosura de seu Criador, que esperamos ver, como o Batista de Cristo. Serve de nos trazer recados da parte de seu Amor e novas de seu Poder, Sabedoria e Bondade. Nós, a esta ou aquela criatura, a queremos levantar por Deus, como os judeus queriam fazer Messias ao Batista. Porém responde-nos, como ele respondeu: Non sum: Eu não sou Deus, que é o mesmo ser, sou a que não sou; sivro de voz, que clama neste deserto da tua peregrinação, que endireites teus caminhos para o Senhor: Ego vox clamantis in deserto: Dirigite viam Domini.

89.         Perguntado o Angélico Doutor S. Tomás que sinais tinha o homem espiritual perfeito, respondeu que dois: primeiro, se se abstém de palavras jocosas e ociosas; segundo, se leva bem ser desprezado.

90.         O homem que naturalmente é pacato e manso de coração corre-lhe obrigação de sofrer a seus próximos, que não tiverem esse dom; assim como o filho a quem seu pai deu o morgado, deixando os mais irmãos pobres, leva o encargo de os sustentar. E nem aquele deve presumir de si, nem os outros desconfiar, porque pode o primeiro perder e destruir esse morgado com vícios; e podem os outros com seu trabalho e diligência granjear muitas riquezas de virtude.

91.         Maior distância vai do obrar ao padecer; do que do dizer ao obrar. Dos que dizem, muitos obram; dos que já obraram muitas coisas e se exercitaram em várias virtudes da vida ativa, raros são os que metidos debaixo da Cruz, puramente ao passivo, saibam levá-la bem. É porém tão rendoso o campo do padecer; que pouca parte que se aproveite, enriquece muito a alma.

92.         Se alguma coisa obraste, ou disseste por te vingar de teu irmão, no tempo da Oração o pagarás; porque buscas a um Senhor, que também do outro é pai; e quando tu só foras seu filho, então devias mais ensinar-te e repreender-te. A Oração (disse S. Nilo Abade) é mansidão, e criatura gerada no desabitado da ira: Oratio est mansuetudo, et faetus ex vacuitate irae procreatus.

93.         Os grandes do mundo são escravos da sua grandeza. Não se podem arrojar, sem levar consigo tantos grilhões e bragas, quantos pontos de honra e razões de estado. Se descaíssem do estado, ou o renunciassem, então ficariam forros.

94.         Se quebras com teu próximo tanto que achas ter grande razão para isso, brevemente ficarás só contigo; e contigo houveras de quebrar primeiro, pois és quem mais te persegue e arrisca. E sobre a razão, que tu achas grande, há muitas muito maiores, a que deves atender; que são o amor que deves a Cristo, que ele manda lhe pagues na mão do próximo: o prêmio do perdão de injúrias e sofrimento de ingratidões; o perdão que tu desejas de teus pecaods; a quietação da consciência na hora da morte; a esperança que todos temos de viver unidos em Deus eternamente, etc.

95.         Quando os Persas, por morte de el-Rei Chorroas, restituiram o sagrado lenho da Cruz, ainda vinha fechada na mesma arca em que a tinham levado, e com o mesmo selo inviolado; sinal de que a não viram, nem tocaram, nem lhes servira de mais que de destruição do seu império. Deste modo, se não aproveitam os maus Cristãos dos frutos da Cruz. Os seus mistérios estão para eles fechados, nem olham mais que para o exterior. Têm fé, mas metida como numa arca, sem usar dela; e assim, em vez de se salvarem, perdem-se. Pelo contrário, o varão espiritual sabe abrir os selos da Cruz de Cristo, conhece seu preço e estima este tesouro.

96.         Três sortes de pessoas (diz o V. Beda) são infelizes na lei de Deus: o que não sabe e não pergunta; o que sabe e não ensina; o que ensina e não faz.

97.         S. Macário disse: Se o Monge tem o desprezo por louvor, e a pobreza por tesouro, e o jejum por iguaria, nunca morre. Porque impossível é que o que crê bem em Deus, e o serve pia e fielmente, caia em paixão imunda, ou engano dos demônios.

98.         A vida espiritual ordinariamente consta de três estaçòes: na primeira edificamos nós; na segunda destrói Deus esse nosso edifício; na terceira edifica o seu. Na primeira há virtudes imperfeitas; na segunda virtudes purgando-se; na terceira virtudes já purgadas. Na primeira consolações sensíveis; na segunda desamparos e tribulações; na terceira, consolações espirituais e muitos dons e favores de Deus.

99.         Uma onça de Oração, feita no meio de trevas e securas, com o ápice, ou ponta do espírito, vale mais que cem libras feitas entre consolações e ternuras.

100.       Amontoas virtudes, devoções e exercícios pios, sem primeiro fazer cabedal de humidade? Pois supõem que levas pó nas palmas das mãos contra os ventos.

101.       Conhecer-te por miserável não é logo ser humilde: é não ser bruto. Se desejas e trabalhas porque te tratem como a miserável, então tens humildade; porque então tratas contigo verdade.

102.       A alma que deseja humildade deve lançar por primeira pedra deste alicerce; que não merece adquirir a humildade, e que todas as suas diligências e trabalhos não poderão fazer que a logre, mas somente a misericórdia de Deus.

103.       A Cruz é a porta real para entrar no templo da Santidade: quem buscar outra, não entrará jamais, nem um passo.

104.       Jejuar à minha própria vontade pode ser pura tentação do diabo. Oh que de jejuadores se hão perdido! Porém de obedientes, nenhum. O miserável Fariseu jejuava duas vezes na semana, e foi reprovado; o Publicano não jejuava, e foi justificado.

105.       Quem pode exercitar a doçura de espírito no meio das dores, a generosidade no meio das fraquezas, a paz no meio das contradições, este é mais que perfeito. A mansidão, a suavidade de coração, a igualdade de humor, são virtudes mais raras que a castidade; e assim as devemos ter em grande estimação. Não há coisa que mais edifique, que a mansidão caritativa; nela, como no azeite da lâmpada, vive e se nutre a chama do bom exemplo.

106.       Há umas fraquezas no doente, que se remediam tirando sangue; porque não nascem de falta de forças, senão de estarem agravadas e oprimidas. Assim, a debilitação e quebramento que sentimos para as obras de Deus, procede de agravação dos apetites, aos quais quanto mais mão damos, maior fraqueza contraímos. E assim, o remédio é sangrar-nos destes apetites.

107.       Quem mais mortifica suas naturais inclinações, mais atrai as inspirações sobrenaturais.

108.       A palavra revestida de brandura tem muito mais força e lustre; e revestida de cólera, uma e outra coisa persuade ao próximo, do que o que se lhe intenta persuadir com modo apaixonado ou imperioso.

109.       Se fores humilde de verdade, acharás palpavelmente que é impossível fazer-te alguém agravo. Ao nada nunca pode faltar lugar, e sempre lhe sobra honra; e o prostado em terra, como temerá cair?

110.       A maior segurança que neste mundo podemos ter de estar em graça de Deus, não consiste nos sentimentos que temos de seu amor, senão na pura e irrevogável entrega de todo o nosso ser nas suas mãos, e na determinada e absoluta resolução de não consentir jamais em pecado algum, grande, nem pequeno.

111.       Importa perseverar dentro da barca em que estamos, para passar o golfo deste mundo e sair no outro. Porque ainda que muitas vezes nos não pusesse nela a mão de Deus, senão as dos homens, todavia, uma vez dentro, quer Deus que não saiamos. Mudanças e transmigrações, ainda de bem para melhor, são arriscadas; não por razão do termo, senão da passagem.

112.       Quem quer outra coisa, senão a Cristo, não sabe o que quer; quem pede outra coisa, senão a Cristo, não sabe o que pede; e quem obra, senão por amor de Cristo, não sabe o que obra.

113.       Foges da Cruz? Encontrarás outra maior. Quanto melhor estava a Jonas ir por seu pé a Ninive, do que ir no ventre de uma baleia? Se o povo de Israel não murmurara no deserto, não andara e desandara por ele quarenta anos: Qui timent pruinam, irruet super eos nix.

114.       Mais aborrece a Graça o ócio, do que a Natureza o vácuo. Por isso tanto que receberes algum favor, prepara-te para a tentação, ou adversidade; porque quer Deus que negoceies com os talentos.

115.       Santa Teresa de Jesus, já depois de estar no Céu, disse a uma sua filha cá na terra: Os do Céu e os da terra sejamos uma mesma coisa em pureza; os do Céu gozando, os da terra padecendo; nós outros adorando a Essência Divina, vós outros o Santíssimo Sacramento.

116.       Os sentidos militam contra a Fé; porquanto o objeto desta respeita os bens futuros, e o daqueles os bens presentes. E assim tanto que a alma pelos sentido prende e pega dos bens presentes, despreza, e perde a vontade de sustentar-se na esperança dos bens futuros. Importa pois grandemente negar violentamente os sentidos, para que a fé tome forças, e o espírito fechado por uma parte, saia pela outra a buscar o que na verdade lhe convém.

117.       A razão de obrarmos o mal tantas vezes e tão facilmente, é porque a alma está pronta para isto. E esta prontidão (entre outras causas) nasce de que a obra precedeu o pensamento consentido, ou ao menos tratado e revolvido morosamente no interior; e a este pensamento precedeu a memória simples, ou imaginação do mal. Por onde, enquanto não consumirmos estas memórias ou imaginações do mal, com a memória de Deus frequente, e se puder ser, contínua, sempre a alma se achará pronta para o mal.

118.       Adverte que a frouxidão e ignávia é a mãe dos vícios; porque os bens que adquiriste, fará que os percas; e os que te faltam, fará que os não adquiras.

119.       Os que agasalham no seio a recordação sentida das suas injúrias, e entretanto lhes parece que oram, são semelhantes aos que enchem o cântaro na fonte e vazam em outro furado.

120.       Se a Moisés mandou Deus não chegasse à Sarça ardendo, sem primeiro se descalçar, como queremos nós chegar na Oração a Deus, que excede todo o sentido e pensamento, e tratar ali com ele, sem despir primeiro cuidados terrenos repreensíveis e paixões pertubadoras?

121.       Quem sabe afogar a ira, mostra ser prudente e do número seleto dos que oram.

122.       Na Igreja primitiva os Cálices eram de pau, mas os Sacerdotes de ouro; agora os Cálices são de ouro, mas muitos Sacerdotes são de pau.

123.       Repara bem, que te deixará o demônio jejuar a pão e água, e cingir-te de cilícios, e carregar-te de disciplinas, e visitar Igrejas e Santuários, e comungar muitas vezes, contanto que não faças Oração Mental. Pelo que é comum sentir dos Santos Padres, que nenhum exercício pio aborrece tanto como este; porque por ele entra o homem em si, e abre os olhos, e lhe aproveitam muito mais todos os outros.

124.       Quando o demônio, depois de aplicar todas suas artes e máquinas, não pode todavia impedir a Oração da alma diligente, então dissimula um pouco e finge retirar-se; e de súbito revolta sobre ela, vingando-se em acendê-la em alguma paixão de ira, com que lhe dissipa a boa têmpera de espírito que tinha adquirido pela Oração; ou a faz cair em alguma imundície das em que nos parecemos com os brutos, para injuriar a semelhança que pela Oração tínhamos com os Anjos.

125.       Mais estima Deus a alma determinada a receber por seu amor todo gênero de interior desamparo e qualquer trabalho que lhe venha, do que se tivera muitas meditações e visitas espirituais, quantas ela possa receber.

126.       Disse o Divino Esposo que a Alma Santa o ferira com um cabelo do seu pescoço: In uno crine colli tui: porque mais agrada a Deus o menor ato de sujeição e obediência, do que grandes obras em que o possamos servir.

127.       O nosso Anjo nem sempre nos move o apetite a obrar, ainda que nos ilumine o entendimento para obrar. E assim não nos prometamos a suavidade sensível, quando basta a razão ilustrada; nem cuidemos que por nos faltar aquela, esta vai errada e a obra não é de Deus.

128.       Se purgares a alma de paixões e apetites, que lhe são peregrinos, compreenderás espiritualmente as coisas, e se negares de ti o apetite acerca delas, perceberás a verdade que em si tem, conhecendo decerto o que há em cada uma.

129.       Que sabe quem não sabe padecer por amor de Cristo? Quando se trata de trabalhos, quanto mais grave e maiores são, tanto melhor é a sorte que os padece.

130.       Não consiste a perfeição nas virtudes que um em si conhece, senão naquelas que Deus aprova; e sendo isto tão oculto aos olhos do homem, nada tem de que presuma e muito de que sempre tema.

131.       Procura chegar a estado, que todas as coisas para ti sejam de pouca ou nenhuma importância, nem tu para elas; para que, esquecido de todas, estejas com teu Deus no secreto do teu retiro.

132.       Oh quanto nos importa ser solícitos e contínuos na Oração! Porque se não é mediante a graça de Nosso Senhor, impossível é ao homem crucificar sua carne; e muito mais impossível a mortificação interior e abnegação de si mesmo e o exercício das virtudes; por serem coisas muito sobre a nossa natureza.

133.       Da conformidade e união da nossa vontade com a Divina, nasce na alma uma contínua alegria em todos tempos e sucessos; que então é pura e limpa, e segura do amor próprio.

134.       A nossa vileza própria descende destes quatro costados: Nada, Pecado, Morte e Inferno. Nada que fomos antes de nos criar Deus; e nada que podemos sem Deus, para obrar assim natural, como sobrenaturalmente. Pecado que incorremos em nosso primeiro Pai; e pecado que cometemos por nossa vontade própria. Morte de que temos contraído a dívida antes de nascermos; e morte, que pagaremos certamente, incertos do quando, onde, e como. Inferno, que temos justamente merecido, e não sabemos se hoje cairemos nele, para não sair eternamente.

135.       Eu te advirto (disse a Virgem Santíssima Senhor Nossa falando com sua serva) que não há exercício mais proveitoso e útil para a alma que o do padecer; porque dá luz, desengana e o leva a Deus, e Sua Majestade lhe sai ao encontro, porque está como atribulado, e o livra e ampara.

136.       Linguagem da terra é falar bem de si, mal de outros, e nunca de Deus; linguagem do Céu é falar mal de si, bem dos outros, e sempre de Deus ou para Deus.

137.       Deus se descobre a quem humildemente se encobre; e Deus se encobre a quem vãmente se descobre.

138.       As ânsias de receber favores de Deus, pondo o cuidado no interesse, inabilitam para os receber; porque são indícios de pouca humildade, e pouca pureza de intenção, e entibiam o cuidado de obrar, pondo-o demasiadamente no receber.