quarta-feira, 23 de abril de 2014

A CARIDADE FRATERNA – Parte II


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu


Qual é o objeto secundário da caridade?

Nos diz o segundo mandamento da Lei: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo por amor a Deus.” O objeto secundário da caridade somos, antes de tudo, nós mesmos, devemos nos amar santamente, desejando nossa salvação para glorificar eternamente a Deus; o é, em segundo lugar o próximo, a quem por amor a Deus temos que amar como a nós mesmos, desejando-lhe a salvação e os meios que conduzem a ela, afim de que juntamente conosco glorifique eternamente a Deus. Nosso Senhor nos apresenta o amor ao próximo como consequência necessária, irradiação e sinal certo do amor de Deus: “Nisto conhecerão que são meus discípulos, se tiveres amor uns aos outros” (Jo 13,35). E diz em outro lugar São João: “Se alguém diz: amo a Deus; porém aborrece seu irmão é um mentiroso” (I Jo 4,20).

A caridade fraterna, como se vê, difere infinitamente da inclinação natural que nos move a fazer o bem ao próximo para o agradar, ou nos leva a amar os benfeitores, a aborrecer aos que nos fazem mal e a ser indiferente com os demais. O amor natural nos faz nos faz amar o próximo por suas boas qualidades naturais e pelos benefícios que dele recebemos. Porém o motivo da caridade é muito distinto; a prova disto é que devemos “amar mesmo nossos inimigos, fazer o bem aos que nos aborrecem e orar pelos que nos perseguem” (Lc. 6, 27-35).

A caridade é também superior à Justiça, não somente a comutativa e a distributiva, mas também à justiça legal e à equidade, que nos mandam respeitar os direitos do próximo por amor ao bem comum da sociedade.

A caridade nos faz amar a nosso próximo e mesmo nossos inimigos, por amor a Deus com o mesmo amor sobrenatural e teologal com que amamos a Deus.

Porém, como é possível amar com amor divino aos homens, que em geral, são imperfeitos e mesmo malvados?

A Teologia responde com um exemplo muito simples que comenta Santo Tomás desta maneira: “O que muito ama seu amigo, ama com o mesmo amor aos filhos deste amigo; os ama porque ama a seu pai, e em consideração a seu pai lhes deseja todo bem; se necessário fosse, iria em socorro deles por amor a seu pai e mesmo perdoaria suas ofensas. Se os homens, pois, são filhos de Deus, ou ao menos são chamados a sê-lo, devemos amar a todos, mesmo nossos inimigos, e ama-los na medida com que amamos nosso Pai comum” (1).

Para amar desta maneira a sobrenatural a nosso próximo, preciso é contemplá-lo com os olhos da fé, dizendo: esta pessoa de temperamento e de carácter opostos aos meus, “não nasceu somente da vontade da carne e do sangue ou da vontade do homem”; como eu, “nasceu de Deus” ou foi chamada a nascer de Deus, a participar da mesma vida divina, da mesma bem-aventurança. Com estes olhos devem olhar-se todos os membros de uma mesma família; e não somente estes, mas também os da mesma associação e da mesma pátria, e muito mais aos da Igreja inteira, que sem desconhecer a natural e necessária variedade de pátrias, as compreende todas para dar entrada a todos seus membros no Reino de Deus.

E assim, podemos e devemos dizer das almas com quem vivemos e mesmo daquelas que naturalmente nos são antipáticas: Esta alma, mesmo quando não estiver em graça de Deus é certamente chamada a estar ou a tornar-se filha de Deus, templo do Espírito Santo, membro do corpo místico de Cristo; quem sabe este esteja mais próximo que eu do Coração de Nosso Senhor e seja uma pedra viva trabalhada mais que muitas outras pela mão de Deus, para ocupar um lugar na Jerusalém Celeste.
Como, pois, não ama-la, se amo a Deus de verdade? E, se não amo esta pessoa, se não desejo seu bem e sua salvação, meu amor a Deus é uma mentira. Se, pelo contrário, a amo, não obstante a diferença de temperamento, de caráter e de educação, é sinal que amo a Deus. Posso realmente amar esta pessoa com o mesmo amor essencialmente sobrenatural e teologal com que amo as Três Pessoas divinas; porque nela amo a participação da vida íntima de Deus que já recebeu ou está destinada a receber, amo a realização da ideia divina que dirige seu destino e a glória que é chamada a dar a Deus.

Objetam os incrédulos: porém, é isso realmente amar o homem? Não é melhor amar no homem somente a Deus e a Cristo, como se admira um diamante em seu precioso cofre?

O homem queria que o amassem por si mesmo; mas não é esse título para exigir o amor divino. Para reagir contra tão egoísta tendência dizia Pascal com frase intencionalmente paradoxal: “Não quero que me amem.”
Realmente a caridade não ama somente a Deus no homem, senão o homem em Deus e o homem por Deus.  Porque a caridade o que deve ser o homem, parte imperecedoura do Corpo Místico de Cristo, e faz tudo que está a seu poder para que consiga alcançar o céu. A caridade ama mesmo o que o homem é por graça e, se não tem a graça, ama nele a natureza, não decaída, lastimada e hostil à graça, mas porque é capaz de recebe-la.

A caridade ama o homem mesmo, porém por Deus, para a glória que é chamado a tributar-lhe, que consiste na manifestação esplêndida da Bondade divina.

Tal é a essência do amor ao próximo ou da caridade fraterna: extensão de nosso amor de Deus a todos que são por Ele amados.

***
Daqui nascem as propriedades da caridade fraterna. Segundo ficou dito, deve ser universal, sem fronteiras. Não pode excluir ninguém, nem na terra, nem no purgatório, nem no céu. Somente se detém ante o inferno. Só se exclui os condenados que não são capazes de chegar a serem filhos de Deus e não há neles a menos chance de ressurgir; o orgulho e o ódio os impedem de sequer pensar em pedir perdão. Porém, fora do caso certo da condenação de uma alma, quem pode estar certo disso? A caridade se estende a todos, sem outros limites que do amor do Coração mesmo de Deus.

Resplandece aqui uma grandeza incomparável, que tanto mais ressalta, quanto mais divididas, humanamente falando, estão as almas, como aconteceu na guerra passada, quando um soldado alemão terminava a Ave Maria que a morte tinha deixado incompleta nos lábios de um soldado francês. Nosso Senhor e a Virgem Santíssima uniam aqueles dois irmãos, embora suas respectivas nações continuavam profundamente divididas. Este é o grande triunfo da caridade.

Para ser universal, não necessita a caridade ser igual para com todos; porque a caridade respeita e eleva a ordem ditada pela natureza. Devemos amar primeiro e sobretudo a Deus, mais que a nós mesmos, pelo menos com amor de estima (appretiative); e, se bem que, nem sempre sentimos esse fervor sensível do coração para com Ele, ao menos a intensidade deste amor deve ir constantemente em aumento. Logo, temos que amar nossa alma para glorificar eternamente a Deus, depois ao próximo e, finalmente, nosso corpo, dispostos sempre a sacrifica-lo pela salvação de uma alma, sobretudo quando é obrigação nossa fazê-lo. No que toca ao próximo, temos que amar primeiro os melhores, os que estão mais próximos de Deus, e também aqueles que estão mais próximos de nós pelo sangue, a afinidade, a vocação ou a amizade. Quando mais próxima de Deus está uma alma, mais merece nosso carinho. Quando mais próxima de nós está, mais íntimo é nosso amor por ela e mais completa deve ser nossa abnegação no que se refere à família, a pátria, a vocação e a amizade (2). Donde que a caridade não destrói o patriotismo, mas o eleva, como aconteceu com Santa Joana Darc e São Luís
.
Tal é a ordem da caridade: Deus quer reinar em nosso coração, mas sem excluir carinho algum que seja compatível ao Seu; antes o eleva, o vivifica e o faz mais nobre e mais generoso. Mesmo aos inimigos da Igreja devemos amar, rogando por eles; porém seria transtornar a ordem da caridade, com o pretexto de misericórdia, amar mais aos inimigos da Igreja que alguns de seus filhos que trabalham ao nosso lado.

Finalmente, a caridade fraterna, como o amor de Deus, não deve ser só afetiva, mas também efetiva e ativa, não somente benévola, mas também benfeitora. No lo disse Nosso Senhor: “Amai vos como eu vos tenho amado”; Ele nos amou até a morte de Cruz; os santos o imitaram fazendo de sua vida um ato contínuo de caridade transbordante, fonte de paz e santa alegria.

Tal é a caridade fraterna, extensão ou prolongação de nosso amor a Deus.

Continua...

Notas:
      (1)       – Santo Tomás, IIa – IIae, as duas grandes questões 25 e 26 sobre a extensão e a ordem da caridade. As resumimos nas páginas seguintes do texto.
      (2)       – Santo Tomás, IIa – IIae, q. 26, a.8.

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