terça-feira, 1 de abril de 2014

A MORTIFICAÇÃO


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
Les Trois Ages de la Vie Intérieure

Sobre a mortificação cristã, notemos, em primeiro lugar, duas tendências extremas e errôneas: de um lado o naturalismo prático que é tão frequente e no que caíram os quietistas, e de outro lado, a orgulhosa austeridade jansenista, que está muito afastada do proceder do amor de Deus. A verdade se ergue como o cume em meio desses dois extremos, que representam os desvios contrários dos erros.

O Naturalismo Prático, na Ação e na Inanição

O naturalismo prático, que é a negação do espírito de fé na conduta da vida, continuamente tende a renascer em formas mais ou menos acentuadas, como a poucos anos pudemos ver no americanismo e no modernismo. Em muitas obras que apareceram nesta época, se menosprezava a mortificação e os votos religiosos, nos que se pretendia ver, não uma libertação que favorecia ao voo da vida interior, mas como um impedimento para o apostolado. Diziam-nos: “Porque falar tanto de mortificação sendo o cristianismo uma doutrina de vida? De renuncia se o cristianismo deve assimilar-se toda atividade humana em vez de destruí-la? De obediência se o cristianismo é uma doutrina de liberdade? Essas virtudes passivas, continuavam, não tem maior importância senão para os espíritos negativos, incapazes de empreender coisa alguma e sem outra fortaleza que a da inercia.”

Por que, seguem dizendo, desprezar nossa atividade natural? Não é boa nossa natureza? Não procede de Deus e está inclinada a ama-Lo sobre todas as coisas? Nossas mesmas paixões, movimentos de nossa sensibilidade, desejo e aversão, gozo ou tristeza, não são boas nem más; são o que nossa intenção põe nelas. Trata-se de energias que é preciso utilizar e não é lícito anulá-las, mas as devemos moderar e regular. Esta é a doutrina de Santo Tomás, muito diferente, acrescenta-se, de tantos autores de espiritualidade e muito pouco em consonância com o que diz o capítulo da Imitação, III, c. LIV, a respeito dos ‘diversos movimentos da natureza e da graça’.”

Claro está que ao falar assim contra o autor da Imitação, deixava um pouco no esquecimento essas palavras do Salvador: “Em verdade vos digo, se o grão de trigo, depois de caído na terra, não morre, fica infecundo; porém, se morre, produz muito fruto. O que ama sua alma a perderá; mas o que a aborrece neste mundo, a conserva para a vida eterna” (Jo XII, 24).

Diziam também: “Por que combater tanto o próprio juízo, a própria vontade? Isso equivale a reduzir-se a um estado de servidão que destrói toda iniciativa, e faz perder o contato com o mundo, que não devemos desprezar, mas melhorar”. Porém, ao falar assim, não caía no esquecimento o sentido preciso que os verdadeiros tratadistas de espiritualidade deram à “vontade própria”, que sempre significou a vontade não conforme a vontade de Deus?

Nesta objeção formulada pelo americanismo e depois repetida pelo modernismo (1), a verdade vem habilmente mesclada com a mentira e o erro; até se invoca a autoridade de Santo Tomás e com frequência se repete esse princípio do grande Doutor: “A graça não destrói a natureza, antes, a aperfeiçoa”; os movimentos da natureza não são tão desregrados, se afirma como sustenta o autor da Imitação, e é necessário o total desenvolvimento da natureza dirigida pela graça.

E como falta o verdadeiro espírito de fé, se falseia o princípio de Santo Tomás que se invoca. Fala este da natureza como tal, no sentido filosófico da palavra; da natureza no que tem de essencial e bom, que é obra de Deus, e não da natureza decaída e ferida, tal como esta de fato, como consequências do pecado original e nossos pecados pessoais, mais ou menos deformada por nossos egoísmos, às vezes inconsciente, por nossos desejos desordenados e nossa soberba. Refere-se igualmente Santo Tomás às paixões ou emoções como tais, e não enquanto estão desordenadas, quando se afirma que são forças que devem utilizar-se; mas para tirar proveito delas, preciso mortificar o que em tais há de desordenado; e não basta dissimulá-lo e regulá-lo, mas é necessário fazer morrer totalmente.

Estes e outros equívocos semelhantes não tardam em produzir suas consequências. Por seus frutos se conhece a árvore; e querendo agradar excessivamente o mundo, em vez de convertê-lo, esses apóstolos de novo estilo, que foram os modernistas, deixaram-se perverter por ele.

E assim eles desconheceram as consequências do pecado original; ouvindo-os falar, dir-se-ia que o homem nasce bom e perfeito, como sustentavam os pelagianos e mais tarde Jean Jacques Rousseau.

Eles esqueceram a gravidade do pecado mortal como ofensa feita a Deus, e só o consideraram com uma desordem que dana o homem. Em consequência, tiraram a importância e a gravidade do pecado do espírito: incredulidade, presunção e orgulho. Dir-se-ia que a falta mais grave é abster-se das obras sociais; e como consequência, a vida puramente contemplativa era considerada como coisa quase inútil ou como ocupação de inúteis ou incapazes.

O mesmo Deus quis replicar a esta objeção pela canonização de Santa Teresinha do Menino Jesus e pela extraordinária irradiação desta alma contemplativa.

Desconhecia-se igualmente a infinita elevação de nosso fim sobrenatural: Deus autor da graça. E em vez de falar de vida eterna e de visão beatífica, se falava de um vago ideal moral com aparência de religião, no qual desaparece a radical oposição entre o céu e o inferno.

Esquecia-se, enfim, que o instrumento que Nosso Senhor quis empregar para salvar o mundo foi a Cruz.

A nova doutrina, em todas as suas consequências deixava entrever seu princípio e fundamento: o naturalismo prático, não o espírito de Deus senão o da natureza, negação do sobrenatural, se não teórica, ao menos na conduta da vida. Essa negação foi formulada várias vezes na época do modernismo: a mortificação não é essencial ao cristianismo. Porém, que outra coisa é a mortificação senão a penitência? E não é essa necessária ao cristão? Como então poderia ter escrito São Paulo: “Trazemos sempre em nosso corpo, por todas as partes, a mortificação de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste também em nossos corpos” (II Cor. IV, 10)?

Sob outra nova capa, o naturalismo prático fez sua aparição entre os quietistas, na época de Molinos, no século XVII. Foi um naturalismo, não de ação, como no americanismo, senão de inação. Pretendia Molinos que “querer obrar, é uma ofensa feita a Deus, que quer obrar, só, em nós” (2). Deixando de obrar, sustentava, a alma se aniquila e volta a seu princípio, e, neste estado, Deus, só, vive e reina com ela (3). Assim chega-se ao naturalismo prático por um caminho contrário ao do americanismo que exalta a atividade natural.

Molinos deduzia de seu principio que a alma não deve realizar atos de conhecimento ou de amor de Deus (4); nem pensar no céu ou no inferno, nem refletir sobre seus atos, nem sobre seus defeitos (5); o exame de consciência ficava assim suprimido. Acrescentava Molinos que tampouco deve a alma desejar sua própria perfeição, nem a salvação (6); nem pedir a Deus coisa alguma determinada (7), se não que se abandonar a Ele, para que faça nela, sem ela, sua divina vontade. E dizia, enfim: “A alma não tem necessidade de resistir positivamente às tentações (8); a cruz voluntária da mortificação é uma carga pesada e inútil, da qual temos que nos desembaraçar” (9).

Recomendava permanecer, na oração, em uma fé obscura, em um repouso em que se deve esquecer todo o pensamento preciso, relativo à Humanidade de Jesus, ou mesmo as Perfeições divinas, a Santíssima Trindade; e permanecer nesta quietude sem produzir ato algum. “Nisto consiste”, dizia ele, “a contemplação adquirida, na qual é preciso permanecer toda a vida, se Deus não o eleva a contemplação infusa” (10).

Na realidade, esta contemplação, assim adquirida por cessação de todo ato, não era outra coisa que uma piedosa sonolência, mais sonolenta que piedosa, da que certos quietistas nunca queriam sair, nem mesmo para ajoelhar-se na elevação durante a Missa. Assim permaneciam em sua pretendida união com Deus, que confundiam com uma augusta forma do nada. Tal estado faz pensar mais em um nirvana dos budistas que na união transformante e comunicativa dos santos.

Daí se vê que a contemplação adquirida, que Molinos aconselhava a todos, era uma passividade, não infusa, senão adquirida voluntariamente mediante a cessação de toda atividade. O mesmo atribuía a esta pretendida contemplação adquirida coisas que não são verdade e suprimia com um único golpe toda a ascética e a prática das virtudes, considerada pela Tradição como a verdadeira disposição para a contemplação infusa e união com Deus. Também pretendia que “a distinção das três vias: purgativa, iluminativa e unitiva, é o maior absurdo que se tenha dito na mística; já que, explicava, só há um caminho para todos igual, o caminho interior” (11).

Tal supressão da mortificação conduzia às mais profundas desordens, até chegar a dizer Molinos que as tentações do demônio são sempre úteis, mesmo quando nos arrastam a atos desonestos; e que nem mesmo nestes casos é preciso fazer atos das virtudes contrárias, mas há que resignar-se, já que tais coisas revelam nosso nada e pobreza (12). Só que Molinos, em lugar de chegar, por este caminho, ao menosprezo de si mesmo pelo reconhecimento da própria culpabilidade, pretendia chegar à impecabilidade (13), e a morte mística; singular impecabilidade que se conciliava com todas as desordens (14).

Tão lamentável doutrina é uma caricatura da mística Tradicional, que fica radicalmente falseada em todos os seus princípios. E com o pretexto de evitar a atividade natural que o naturalismo de ação exalta, degenera aqui no naturalismo prático da preguiça e da inação. Era, por outro caminho, a supressão da ascética, do exercício das virtudes e da mortificação (15).

Os erros do quietismo demonstram que é possível o naturalismo prático daqueles que perderam a vida interior e o outro, bem distinto, dos que nunca o possuíram.

No extremo oposto do naturalismo prático, se encontra às vezes, embora seja coisa rara, a orgulhosa austeridade de um falso sobrenaturalismo, segundo se pode ver no jansenismo, e antes, em diversas manifestações de fanatismo, como entre os montanistas no século II e entre os flagelantes do século XII. Todas essas seitas perdem de vista o espírito de mortificação cristão, que não é soberba, mas de amor de Deus.

No século XVII, os jansenistas caíram em um pessimismo que uma alteração da ideia cristã da penitencia. Exageravam, como os primitivos protestantes, as consequências do pecado original, até o extremo de dizer que o homem não conservava o livre arbítrio, a liberdade de indiferença, mas somente a espontaneidade: e que todos os atos dos infiéis são pecado (16). Ensinava que “o homem deve fazer, durante toda sua vida, penitencia pelo pecado original” (17). Em consequência, retinham as almas, durante toda a vida, na via purgativa, e as afastava da comunhão, com a desculpa que não somos dignos de união tão íntima com Nosso Senhor; só poderiam ser admitidos a ela, aqueles que têm um puríssimo amor de Deus, sem limites nem misturas (18). Esqueciam que tal amor é precisamente o efeito da comunhão, quando esta vai acompanhada da luta generosa contra o que há em nós de desordenado. O jansenismo jamais chegou à liberdade interior e a paz (19).

É preciso, nesta, como em outras questões, evitar os erros opostos entre si: o naturalismo prático e a orgulhosa austeridade. A verdade se encontra entre esses dois extremos e muito acima deles, como um cume. Assim se vê com toda evidencia, se se considera, de uma parte, a elevação de nosso fim último e da caridade e, por outra, a gravidade do pecado mortal e suas consequências.

(Continua...)


   (1)    – Denzinger, Enchiridion, n. 1967 sq., 2104. 
   (2)       - Denzinger, Enchiridion, n. 1221 sq.
   (3)       Ibid., 1224 sq. 
   (4)       - Ibid., 1226. 
   (5)       - Ibid., 1227-1229, 1232.
   (6)        - Ibid., 1233 sq.
   (7)       - Ibid., 1234.
   (8)       - Ibid., 1257.
   (9)       - Ibid., 1258. 
   (10)    – Denzinger, Ibid., 1243.
   (11)    - Ibid., 1246.
   (12)    - Ibid., 1257-1266.
   (13)    - Ibid., 1257-1286.
  (14)    – Cf. Denzinger, 1268: “Hujusmodi violentiae (daemonis) sunt médium magis proportionatum ad annihilandam animam et ad eam adveram transformationem et unionem perducedam”; n° 1268: “Melius est ea non confiteri; quia non sunt peccata, nec etiam venialia.”
  (15)    Veja-se a respeito dessas aberrações dos quietistas, a obra de P. Dupon: Michel Molinos.  De sua leitura se deduz que um dos principais erros do quietismo espanhol foi o considerar como adquirida, por próprio esforço da vontade (mediante a supressão dos atos), a oração de quietude, que, na realidade é infusa, como o prova Santa Teresa (IV Morada). Fingia-se assim a oração infusa antes de tê-la recebido, e se a desfigurava completamente suprimindo toda a ascese.
   (16)    Denzinger, n° 1094, 1291, 1298.
   (17)    Ibid., 1309: “Homo debet agere tota vita poenitentiam pro peccato originali.”.
  (18)    Ibid., 1313: “Ascendi sunt a sacra communione, quibus nondum inest amor Dei purissimus et omnis mixtionis expers.”

  (19)    Diz-se de Pascal que toda sua vida esteve pensando na santidade sem alcança-la jamais, por ter permanecido em presença de si mesmo em vez de estar na presença de Deus.

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